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Terça, 30 Agosto 2022 11:19

Investimentos e licenças pulverizados consolidam hidrovia no Pantanal

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Incontáveis tuiuiús na Estação Ecológica Taiamã, reserva federal que pode ser prejudicada pela hidrovia Paraguai-Paraná. Incontáveis tuiuiús na Estação Ecológica Taiamã, reserva federal que pode ser prejudicada pela hidrovia Paraguai-Paraná. Foto: Daniel Kantek / ICMBio.

Os governos de Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai estão transformando os rios Paraguai e Paraná numa hidrovia de 4 mil km entre Cáceres, no Mato Grosso, e Nueva Palmira, no Uruguai, já no Rio da Prata. Dali, as exportações de commodities ocuparão barcos ainda maiores rumo a mercados globais. O projeto nasceu nos anos 1980.

Até o fim da década, 285 milhões de toneladas de cargas dos cinco países fluirão pela hidrovia, projetam a Agência Nacional de Transportes Aquaviários e a Universidade Federal do Paraná. Menos de 10% das cargas brasileiras usam hidrovias – como Tocantins-Araguaia, Tietê-Paraná e Solimões-Amazonas –, enquanto que na Argentina são 55% e no Paraguai 77%.

No Brasil, a ideia é baratear exportações hoje levadas por rodovias ou ferrovias sobretudo a portos no Sudeste e Sul. A empreitada aumentará a produção de itens como soja, milho, cana e minério de ferro, a dragagem e outras intervenções ao longo dos rios e do Pantanal. Junto, virão grandes prejuízos socioambientais.

“Teremos um maior uso do solo para a agricultura [e outras atividades] tendo em vista a facilidade do transporte pela hidrovia”, sinalizou a advogada popular Mariana Lacerda, coordenadora-executiva do PesquisAção, coletivo focado em análises do Pantanal. O bioma é um patrimônio nacional e mundial reconhecido na Constituição de 1988 e pelas Nações Unidas.

Entre 1985 e 2020, a área de agropecuária nas bacias que formam o rio Paraguai saltou (64%) de 8,7 milhões de hectares para 14,2 milhões de hectares – sobretudo de pastagens para gado. Os dados são do MapBiomas, rede com universidades, ONGs e empresas de tecnologia que monitora o uso do solo no Brasil.

A implantação da rota fluvial no país foi estimada no governo Dilma Rousseff (PT) em US$ 422 milhões, hoje cerca de R$ 2,2 bilhões. Os investimentos atualmente pulverizados são de empresários e políticos daqui e de países vizinhos. Confira alguns dos nomes levantados pela reportagem.

Respondem pela ampliação do Porto de Cáceres (MT) a Companhia Mato-Grossense de Mineração, empresa público-privada ligada ao governo estadual, e a Associação Pró-Hidrovia do Rio Paraguai, liderada pelo produtor rural Vanderlei Reck Júnior. Ele presidiu o Sindicato Rural de Tangará da Serra e ajudou a fundar a Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja) no estado. Júnior disputa uma cadeira no parlamento mato-grossense, pelo PSD.

 

O licenciamento dos portos de Paratubal e de Barranco Vermelho começou este ano, na mesma cidade de Cáceres. O primeiro é da Companhia de Investimentos do Centro-Oeste, sociedade formada em 2018. O seguinte integra negócios da multinacional paraguaia Líneas Panchita. A transportadora é uma das maiores do país, com grande número de barcaças no rio Paraguai.

Próximo às cidades de Puerto Suárez e Puerto Quijaro, o porto Jennefer permitirá que produtos bolivianos alcancem o rio Paraguai pelo canal Tamengo. Os aportes no projeto pelo Complejo Agroindustrial NutriOil passam dos US$ 60 milhões, ou mais de R$ 300 milhões. A empresa atua com petroquímica, infraestrutura, produção e distribuição de commodities.

Um terminal em Porto Murtinho (MS) recebe investimentos calculados em R$ 110 milhões do Grupo FV Cereais para importar fertilizantes e escoar uma produção crescente de soja, milho e açúcar. A estrutura movimentará até 2 milhões de toneladas anuais de cargas. Um dos donos da companhia é o piloto da Stock Car Peter Ferter.

Outros portos e terminais no rio Paraguai da mesma maneira recebem recursos público-privados, como os de Ladário e Gregório Curvo, no Mato Grosso do Sul. A instalação de empresas e as obras portuárias são apoiadas por programas dos estados pantaneiros que estimulam produção e exportações do agro e mineração.

“A realidade é que a sociedade brasileira não sabe de todo o planejado e sempre topa com novas e surpreendentes ações relacionadas à implantação da hidrovia”, destacou o biólogo Alcides Faria, diretor da ong Ecologia e Ação (Ecoa), diante das obras que avançam no rio Paraguai.

Dividir para conquistar

Os rios Paraguai e Paraná cortam distintos estados e adentram países vizinhos. Pelas regras brasileiras, portos e demais obras deveriam ser licenciadas juntamente ao compor hidrovia. A opinião de comunidades ao longo dos rios teria que pesar nos empreendimentos.

Mas para driblar uma avaliação pelo Ibama, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, portos no rio Paraguai foram desmembrados em projetos individuais e têm sido aprovados por órgãos dos estados pantaneiros. A medida é questionada na Justiça Federal.

“O licenciamento isolado de portos é uma estratégia deliberada. Uma vez que entrem em operação, farão funcionar a Hidrovia Paraguai-Paraná”, denunciou Mariana Lacerda, do PesquisAção.

Severos impactos podem ser mascarados pela chancela pontual de portos. O estabelecimento da rota fluvial trará intenso tráfego de caminhões e trens até os terminais à beira-rio. O risco de assoreamentos, acidentes com cargas, químicos e combustíveis crescerá com a frenética navegação no rio Paraguai.

“Os licenciamentos ignoram comunidades tradicionais e ribeirinhas que tiram seu sustento do manancial e de afluentes que poderão secar ou sofrer outros efeitos com a hidrovia”, reforçou Isidoro Salomão, da Associação Sócio Cultural e Ambiental Fé e Vida.

A instalação de portos deve forçar dragagens permanentes, a remoção de rochas, de curvas e até de ilhas de vegetação, os “balseiros”, para “retificar” o rio Paraguai e garantir a navegação 24 horas por dia, do Brasil aos demais países da Bacia do Prata.

Retirar as barreiras naturais fará mais água fluir no rio Paraguai. Isso pode reduzir os alagamentos anuais que mantêm o Pantanal vivo. “Será o ‘sangramento’ definitivo do bioma”, alertou Salomão, da Associação Fé e Vida. “Não podemos aprovar essas profundas mudanças no rio”, reforçou.

A ‘sangria’ afetará diretamente áreas como o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e a Estação Ecológica Taiamã. As reservas estão entre Cáceres (MT) e Corumbá (MS). “É a porção mais frágil e conservada do Pantanal brasileiro”, ressaltou Alcides Faria, da Ecologia e Ação (Ecoa). Seria um duro golpe em ambientes já sob alta pressão de ações humanas.

Uma análise do MapBiomas mostrou que a superfície com água no Pantanal encolheu 29% entre as cheias de 1988 e de 2018. Desmatamento, alteração do clima, barramento de rios e avanço do agro estão secando o bioma. A estiagem dos últimos anos vetou a circulação de grandes barcos por até 6 meses no rio Paraguai. Apesar desses impactos, uma lei aprovada em julho no Mato Grosso abriu alas a mais pastagens e pecuária na planície alagável.

“A hidrovia deveria aproveitar apenas os trechos naturalmente navegáveis do rio Paraguai, nas cheias ou estiagens”, ressaltou Faria, da Ecoa. “É mais econômica e ecologicamente viável escoar as cargas pela Ferronorte, ferrovia que conecta os estados pantaneiros ao Sudeste”, concluiu.

Ler 326 vezes Última modificação em Quarta, 19 Outubro 2022 13:25